Chegavam de mil lugares diferentes críticas, principalmente de estar rodeada de pessoas pobres
Esta última afirmação de Mãe Yara me alarmou e perguntei-lhe: A senhora não conhece Deus? “Sim, eu conheço Deus em sua figura simples e hieroglífica, como você o conhece”. “Hieroglífica, sim Neiva. Deus é o poder supremo em todas as coisas. Neste planeta, nas plantas, impregnando o prana no aroma das matas frondosas, no mar, no espaço, nas estradas, na porta estreita da vida, na alegria, na dor e no fundo do nosso coração. Neiva, Deus é a energia luminosa que desencadeia as reações dos seres vivos, dos vegetais, que vive no ambiente inorgânico e gera pelo seu sopro. Neiva seja o mais otimista que puder e permaneça ligada a Jesus”. E o Cacique Guerreiro Tupinambás? Posso falar com ele? “Sim, Neiva, o Seta Branca?” O que vem com uma Seta nas mãos. “Diga comigo, meu pai Seta Branca”. E assim, Mãe Yara foi me preparando para o relacionamento com os espíritos. Havia períodos em que eu me saía bem; outras ocasiões eu estrilava ou não entendia. Certa ocasião uma jornalista, muito amiga, veio passar alguns dias comigo. Ela tinha sido freira durante dez anos. Contei-lhe tudo o que se passava comigo e ela me deu muita força para que eu continuasse. Num daqueles dias, à tarde, fomos para uma festinha na Novacap. Havia muita alegria e o pessoal estava eufórico. Eu estava sentada num banco junto à parede, acompanhando a algazarra, quando alguém passou por mim com uma bandeja cheia de copos de cerveja. Estendi a mão para apanhar um copo quando ouvi uma voz bem mansinha no meu ouvido. “Neiva, não beba, veja, esses copos estão sujos”. Eu vacilei, sem saber o que fazer e permaneci com a mão estendida, enquanto a bandeja passou. Alguém, perto de mim percebeu que eu não apanhara o copo e se levantou fazendo menção de ir pegar um para mim. Nesse momento aconteceu algo inesperado: alguém esbarrou num copo cheio de cerveja derramando em mim e no meu prestimoso amigo. O incidente quase provocou uma briga. Eu estava com uma calça bege que ficou encharcada de cerveja. Na confusão que se seguiu muitos se aproximaram de mim, querendo saber o que havia acontecido. A minha amiga jornalista se divertiu muito com o incidente. Eu por minha vez passei o resto da festa sentada com meu inesperado e prestimoso protetor.
Ele era um engenheiro que havia chegado recentemente que só falava na Novacap e na família que deixara em casa. Eu me lamentava. Sabe Bené, eu vi quem derrubou aquele copo! Ele me olhou e me disse com ar paternal: “Deixe de se impressionar, Neiva, assim você vai acabar ficando louca”. Os dias foram passando e meu conflito aumentando. Um dia tomei uma decisão e junto com minha amiga fui falar com Dr. Sayão. Ele era amigo de minha família, tinha sido o chefe do meu falecido marido em Ceres e eu tinha muita confiança nele. Ele me ouviu com muito carinho, pensou bem e me disse: “Neiva, sabe, nós já temos um psiquiatra aqui no hospital do I.A.P.I., porque você não faz uma consulta com ele? Isso levantou minhas esperanças. No dia seguinte fui ao acampamento do antigo I.A.P.I. onde havia um hospital construído em madeira, aliás, o único daquele tempo em que Brasília era apenas obras em andamento. Eu gozava de muito prestígio entre o povo daquele tempo, pois a única mulher a dirigir um caminhão, de forma que não tive muita dificuldade em conseguir o atendimento. O médico aparentava ter uns 40 anos e demonstrava um ar de cansaço. Percebi logo que ele ainda não estava adaptado ao ambiente de obras e balbúrdia de Brasília. Embora tudo fosse de madeira, o consultório onde ele me atendeu era muito arrumado, não faltando inclusive o sofá alto para exame dos pacientes, uma pia com torneira, uma estante com alguns livros e um biombo num canto da sala. Ele olhou para minhas botas de cano alto e meu culote, e vi por trás de seus óculos que ele não estava ainda acostumado com nossa vida de acampamento, com as ruas enlameadas e com o ar desenvolto que tais circunstâncias produzem nas pessoas.
Mas logo ele saiu de seu impacto, mandou-me sentar em frente da mesa, pegou a caneta e uma ficha e fez as perguntas de praxe: nome, idade, ocupação, estado civil, etc. que eu respondi com certa impaciência. Ele terminou a ficha, largou a caneta, colocou as mãos sobre a mesa, olhou-me no rosto e perguntou gentilmente. “Então, em que posso serví-la? O que a senhora esta sentindo?” Sabe doutor, eu não estou me sentindo muito bem. Acho que estou com estafa, estou tendo alucinações, estou vendo espíritos e o pior é que estou ouvindo tudo. Ouvindo isso ele começou a abanar a cabeça como se tivesse chegado a um pronto diagnóstico e foi logo dizendo: “È, está me parecendo que a senhora está mesmo estafada. Tem trabalhado muito? No que a senhora trabalha?” Quando eu lhe disse com uma ponta de orgulho, que era motorista profissional, pois quando eu respondera as perguntas da ficha eu dissera apenas, “motorista”, ele me olhou com mais atenção e continuou com seu monólogo partenal. Nisto senti um calafrio percorrer minha espinha e vi um vulto saindo de trás do biombo. Quase saltei da cadeira, pois pensei que alguém estivera o tempo todo me espionando. O médico deve ter notado minha repentina agitação, pois parou de falar e me olhou com um ar de interrogação. O vulto foi se aproximando e, embora eu continuasse a olhar fixamente para as mãos do médico sobre a mesa eu continuava a ver perfeitamente a figura que se aproximava, notava suas feições macilentas e seu andar arrastado.
Comecei a sentir medo e com a mão direita e o polegar comecei a mostrar para o médico. Ele acompanhou o meu gesto e olhou na direção do vulto. Fez um movimento com as duas mãos, como quem nada estava vendo e reassumiu seu monólogo. Nisso o espírito parou e, com voz pastosa falou: “Boa noite, boa noite.” Meu gesto se tornou mais agitado e eu comecei a apontar nervosamente para o espírito enquanto ele começou a mostrar certa perplexidade. Enquanto isso acontecia minha mente entrou quase em colapso tal a confusão em que me achava. Eu estava realmente vendo o espírito ou era uma alucinação? Tentando racionalizar as coisas eu esqueci até mesmo de minha conversa com Mãe Yara e comecei a explicar ao psiquiatra que eu era de origem católica, que tinha duas tias que eram freiras e um primo que era padre, que já havia procurado o pároco do Núcleo e que ele mandara como penitência que eu puxasse uma carrada de tijolos para a igrejinha que ele estava construindo. O vulto estava quase junto de nós, e eu já estava me preparando para levantar da cadeira quando o “mortinho” falou: “Diga a ele, e apontava para o médico, diga a ele que sou o Juca, seu pai, eu sei que você está me vendo mas ele não me vê, diga a ele que sou Juca, seu pai, eu morri há dois meses lá no Rio, eu vim ver como ele está. Nós éramos muito ligados, agora eu morri, morri.” E sua voz foi se tornando mais pastosa, mais sortuda. Aí então eu não resisti mais e também não tive mais dúvida. Doutor, Doutor o homem, o espírito, o defunto, ele diz que é seu pai.” O doutor olhou-me apreensivo. “ Meu pai”. Sim, seu pai, ele diz que se chama Juca, e que morreu há dois meses no Rio.*
Nem bem acabara de falar quando o médico se levantou, lívido, com as feições transtornadas, os olhos quase fora das órbitas clamando com voz rouca: “ Meu Pai, meu pai, oh! Meu Deus!, meu pai, onde?, a senhora está vendo ele, como é que ele esta?. Não sei se foi aquela cena patética ou se foi o fato de que eu chegara com esperanças de meu caso ser de simples psiquiatria e poder ser resolvido com remédios mas, a verdade é que naquele instante, vendo o espírito de um defunto (que não parava de falar e acenar em direção ao médico), vendo um cientista alucinado com a simples menção de um mortinho, eu entrei em pânico, colapso nervoso, nem sei o que. O fato é que me levantei com violência e tentei sair por onde entrara. Não sei se a fechadura ou trinco emperrou, mas o fato é que eu sentei o pé na porta com tal violência que a porta abriu ao contrário e ficou dependurada nas dobradiças caídas. Com a mesma violência entrei no meu internacional e não respeitei nem seu “queixo seco”, engrenei vigorosamente e sai sem saber bem o que estava fazendo. Chegando em casa chorei, chorei muito.
Diga a ele, e apontava o médico, diga a ele que sou Juca, seu pai, eu sei que você está me vendo, mas ele não me vê, diga a ele que sou Juca, seu pai, eu morri há dois meses lá no Rio..
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