O
dia da Casa Grande na balbúrdia habitual. Neiva, cansada de uma
atividade ininterrupta e exaustiva, reclinou-se na poltrona junta à
sua mesa. Nestor entrou silencioso e sentou-se junta a ela. Ela abriu
seus olhos profundos e um brilho de carinho maternal animou seu
olhar. “Tia, disse o Jaguar, o começo de sua clarividência deve
ter sido muito complexo, não foi? Se a senhora está disposta hoje,
me conte como foi o seu começo”. Filho, quando a vida missionária
se descortinou na minha frente, tudo se modificou. Nesse tempo, no
meu peito só havia lugar para terríveis conflitos que me empurravam
para o abismo de uma obsessão. Porém, mesmo em meio a esse
conflito, minha mente buscava uma verdade; essa verdade era Jesus,
Jesus o Caminheiro, o homem divino e absoluto, que caminhava nas
margens do Rio Jordão. Aquele que alimentava os pobres e não se
preocupava com os rabinos e os doutores da lei, que lhe haviam virado
as costas.
Então,
em meio aos maiores conflitos eu formava na mente a imagem daquela
rica mensagem, Jesus, e sentia sua verdade em todo o meu ser. Uma vez
firme, entreguei a Jesus os meus olhos, pedindo que os arrancasse, se
eu, por vaidade, enganasse alguém em seu nome. Daí para frente,
filho, deixei de me preocupar com os valores sociais e penetrei com
respeito no mundo dos espíritos. Mas, como se não bastasse a minha
grande dor, e como se todos fossem alheios aos meus conflitos,
chegavam de mil lugares diferentes críticas, principalmente de estar
rodeada de pessoas pobres e, às vezes, até aleijados. Isso
aumentava muito minhas angústias, fazendo com que aquela mulher que
existia dentro de mim começasse a se apagar, ela estava se
ausentando de si mesma. Oh meu Deus. É difícil animar o corpo
quando a alma está ausente! Filho, quantas vezes recusamos a água,
sabendo que não podemos viver sem ela! Nesse tempo comecei a
aprender a viver no meio de uma multidão silenciosa que me assistia
e de outra, barulhenta que me exigia respostas.
A
primeira, invisível, estava sempre influenciando, ajudando na
aproximação de mundos inesperados, e só Deus sabia o que chegava
ao meu misterioso mundo interior. Por isso não sabia mais sorrir.
“Sem luta não há evolução”, dizia Mãe Yara. Falava-me
deixando que eu visse o seu semblante, que eu não me cansava de
admirar. Houve um dia porém que ela chegou com ar mais sério.
“Neiva, disse ela, já fiz de tudo para chegar até você. Já me
fiz de aleijada dando o nome de Adelina, mas desta vez a farei saber
que o amor é a arma imponderável do espírito missionário. Você
já não tem escolha pois a sua missão é divina”. Eu respondi com
algumas palavras compungidas, mas ela as repeliu. “Em nenhuma de
suas vidas você foi piedosa e é por isso que você agora foi
escolhida”. Nestor que ouvia atentamente este relato interrompeu.
“Mas Tia, não estou entendendo isso que Mãe Yara lhe disse. Quer
dizer que a senhora foi escolhida para esta missão porque nas vidas
anteriores nunca foi piedosa. Exatamente, meu filho. Nem mesmo eu
naquele tempo entendi isso, mas hoje sabemos muito bem o porque. A
piedade é a vida religiosa artificial e supérflua que não combina
com a força do Jaguar. Como poderia eu criar o Doutrinador? Mas,
deixe-me continuar o relato de meu diálogo com Mãe Yara. Ajude-me,
me ilumine, continuei, para que seja o que Deus queira que eu seja.
Ajude-me para que eu possa abandonar os tristes hábitos do meu
passado. Haverá alguém que por acaso, goste de sofrer? “Não será
preciso repudiar os seus tristes hábitos. Não se esqueça de que o
belo é o resplendor do verdadeiro. Não saia de você mesma, seja
natural, ame o que sempre amou e recuse o que sempre recusou. A única
diferença Neiva, é aprender a tolerar os seus amigos, até que você
se faça acreditada. Esse será o período mais difícil de sua
missão, porém, só Deus conhece Deus”.
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