ELIETE
Eliete
chegou ao Vale do Amanhecer na garupa de uma Honda de 350 cilindradas
e com um barulho ensurdecedor. Calça rancheira, cabelo mal cuidado e
blusa decotada. Trazia, no rosto jovem, a marca da velhice precoce.
Na dureza dos olhos guardava a indiferença gerada pelo uso de drogas
e, na face, a marca das intempéries. Foi recebida com o mesmo
carinho dispensado aos hippies e, de pronto, se tornou parte
integrante do nosso quotidiano. Sempre cortês e com um meio sorriso
de indiferença, jamais reclamou ou fez qualquer ato que a tornasse
menos simpática. Gerava, porém, em todos nós, um sentimento de
tristeza e de abandono. Estar perto de Eliete era como estar próximo
de um abismo, de coisas sem princípio nem fim.
Nascera
no Rio de Janeiro, filha de um casal jovem e feliz. Antes dela, o
casal tivera um menino. A menina, loira e bonita, era como um
ornamento na vivência daquele casal, tipicamente carioca, de padrão
econômico relativamente estável, de vida descuidada e superficial.
Trabalho,
praia, amigos e o carro do último ano eras as preocupações
maiores. Eliete assim cresceu, fútil, sem maiores problemas,
alimentada, em seu incipiente intelecto, por histórias em
quadrinhos, com escolaridade fácil e tendo a única preocupação a
de manter-se nas ondas jovens das praias cariocas. Nenhum cuidado
tirava o bom-humor constante da família.
Porém,
no plano astral, os Mentores se movimentavam em benefício daquele
lar. A vida despreocupada os levaria ao estacionamento, à estagnação
espiritual e ao não cumprimento de suas obrigações espirituais.
Eliete viera com a missão de trazer, àquela família, a mão de
Deus! Como missionária, fora escolhida para sacudir a situação
aparentemente estável daquele lar, e teve início, então, a série
de dissabores nas vidas deles. Delegacias, hospitais, escândalos e
toda gama de dores trazidas pelo submundo espiritual, começaram a
afligir aquelas pessoas.
Aos
quatorze anos, Eliete começou a trazer os primeiros problemas: por
seu intermédio, o passado transcendental começou sua cobrança
naquele lar despreparado para coisas mais sérias.
Eliete
conheceu Félix, rapaz estróina e filho único de uma viúva
neurótica. Logo, Félix iniciou-a no mundo dos sonhos e das drogas.
O plano espiritual começou, assim, a exercer sua ação catalisadora
na faixa cármica familiar. Félix a preparava, “espiritualmente”,
para as viagens onde viviam experiências fantásticas.
O
lazer constante e a ausência de problemas econômicos lhes dava
condições para o luxo de pesquisas místicas, alternadas com
pesquisas eróticas, e Eliete tornou-se verdadeira sacerdotisa do
vício e dos absurdos. Rapidamente, seu comportamento começou a
atingir a tranqüilidade de seus pais, pouco afeitos às questões
psicológicas, sem nenhuma preocupação com o mundo dos espíritos,
sem religião ou qualquer outra forma coibidora.
A
situação de conflito se instalou. Sem saber procurar a solução
para o problema, os pais de Eliete estavam preocupados, em primeiro
lugar, com a manutenção de seu status de devaneio e despreocupação.
A própria Eliete facilitou uma solução: foi morar na companhia de
Félix e sua mãe, passando a viver, quotidianamente, num repugnante
mundo de depravação. Nesse ínterim, as vidas de seus pais entrou
em franca decomposição. Embora se amassem, não tinham tolerância
e nem competência para enfrentar problemas mais sérios. A situação
gerada pela vida de Eliete, de agressões e acusações mútuas, fez
com que o casal se desquitasse.
O
clímax da faixa cármica trouxe um princípio de solução: Félix,
dopado, subiu, sub-recepticiamente, na carroçaria de um caminhão
carregado de madeira. Dormiu e caiu do veículo em grande velocidade,
morrendo no asfalto.
Eliete
vivera, na companhia dele, três anos de depravação e
licenciosidade. Sem o companheiro, ficou desnorteada, e foi viver com
o pai. Ambos, porém, não se toleraram por muito tempo, e ela se
mudou para a casa de sua mãe, onde o quadro de intolerância se
repetiu. Sem saber o que fazer com Eliete, mandaram-na para estudar
na Inglaterra, onde, em vez de ir para a faculdade, juntou-se a um
grupo de hippies, com os quais viveu cerca de dois anos.
Desencantada
e saturada de tudo, Eliete voltou ao Brasil, e passou a perambular
pelas estradas, em companhia de outros jovens nas mesmas condições.
Freqüentava as praias, as tabernas e vários locais de iniciações
misteriosas, com isso adquirindo deformado conhecimento do mundo
espiritual e da mediunidade.
Com
o cérebro atingido pelas drogas, desenvolveu mediunidade angustiada.
Vivia perturbada pelos sonhos fantásticos e por inquietação
permanente.
Sua
incerta peregrinação a trouxe para o Vale do Amanhecer, em
companhia do grupo hippie. A viagem na garupa de uma motocicleta
marcou o começo de sua redenção, pois ali ela encontrou amor e
compreensão, a aceitação natural, a ausência de críticas e a
vivência em meio ao trabalho mediúnico intenso, o que a levou a
encontrar uma razão de viver.
Desenvolveu
sua mediunidade, entrou em contato espiritual com seus Mentores,
abandonou as drogas e, em pouco tempo, transformou-se numa boa moça,
saudável física e mentalmente. Ingressou, decididamente, no caminho
crístico do amor, da tolerância e da humildade.
Eliete
fez sua Iniciação. Voltou para o Rio, mas não quis a companhia dos
pais. Arrumou um emprego como balconista, e vive a vida tranqüila de
quem sabe direcionar o seu próprio destino.
-
É, Neiva, uma história interessante. Só não entendi uma coisa:
geralmente, os jovens que aparecem por aqui têm sua desgraça
debitada aos traumas de família, pais fracassados, mães
desajustadas e coisas assim. Eliete, porém, nasceu num lar feliz, no
qual havia amor, padrão de vida e posição elevados na sociedade.
Como explicar isso?
-
Ausência de um preparo espiritual, Mário, falta de profundidade
vivencial. Não se esqueça de que estamos habituados a enfrentar os
problemas dos que nos procuram quando existe uma crise, uma eclosão
de conflitos. Em nossa preocupação em amainar a angústia, em nossa
função de socorristas, não nos ligamos em julgar ou analisar, e,
com isso, não vamos às raízes sociais, o que, aliás, não é de
nossa competência. Nossa função não é controlar a sociedade,
mas, sim, apenas dar amparo aos que nos procuram. O caso de Eliete é
o mesmo do de milhares de jovens para os quais as funções do lar
são somente de abrigo e proteção. O lar moderno tornou-se apenas
isso, embora com muitas e benéficas exceções. É por isso que
afirmamos ser a família o maior lugar dos reajustes, onde os
espíritos se encontram para cobrar e resgatar suas dívidas
espirituais e cármicas. A felicidade no lar tornou-se um padrão
abstrato, uma espécie de representação generalizada. Imagine,
Mário, um grupo de atores teatrais que fossem obrigados a viver seus
papéis vinte e quatro horas por dia, andar na rua e em todos os
lugares com suas caracterizações, e você terá uma idéia do Homem
moderno. Papéis e mais papéis. No escritório, ele é o chefe; na
rua, ele é o transeunte; no volante do carro, ele é o motorista; no
clube, ele é o desportista; e em casa, ele é o chefe da família.
Na verdade, todos esses papéis escondem seres angustiados,
irresolvidos, despersonalizados. O Homem moderno vive a angústia da
incerteza e da ausência de resposta para as indagações básica: de
onde vem? Para onde vai?
-
Neiva, já discutimos isso antes. Vimos que o Mediunismo seria uma
solução, mas o simples fato de se falar em Mediunismo já parece
fanatismo, superstição. Qual seria a mensagem que iria levar um
pouco de lenitivo para tantos milhões de seres humanos? Como
poderíamos atingir essas almas sofredoras?
-
Mário, Mário! Não se preocupe tanto com isso. Lembre-se de que
existe perfeita coordenação nos planos espirituais, e Deus provê a
todas as criaturas sua oportunidade. Descrevi um quadro de
superficialidade na vida humana, mas o Homem, que está sob a máscara
do ator, tem um espírito transcendental a animar sua alma e a exigir
o perfeito cumprimento das tarefas cármicas. O próprio caso de
Eliete ilustra o que digo. Chegado o momento, as Leis Divinas
entraram em ação, e seus pais foram jogados no cumprimento de suas
faixas cármicas. Eliete serviu como instrumento, entre a vida que
eles levavam, sem dor, sem sofrimento, sem preocupações, e para
superação do sofrido quadro atual, eles irão encontrar o caminho
de suas realizações espirituais.
-
Neiva, será que só pelo sofrimento as criaturas encontram o caminho
da realização espiritual?
-
Não, Mário, não pelo sofrimento, mas, sim, pela dor!... É preciso
saber a diferença entre uma coisa e outra. Aqui, no Vale, padecemos
muita dor, não é verdade? Mas você acha que nós sofremos?
-
É, pensando bem, é isso mesmo! Eu não me julgo um sofredor, e vejo
poucos se queixarem aqui dentro. Entretanto, vivemos mergulhados na
dor, sejam as nossas, ou sejam as dos outros. É, isso é muito
interessante!
-
Mário, há outro ângulo pelo qual esse problema precisa ser
examinado, que é o da realização, na faixa da personalidade.
Muitas vezes o excesso de bem estar, muita estabilidade e segurança
social leva o espírito ao estacionamento, a interromper sua
trajetória transcendental. Isso é verdadeiro até no plano físico.
O
ser excessivamente perfeito, porém animalizado, só consegue emitir
na horizontal do plano físico, e só recebe sua alimentação desse
plano. Para que a pessoa se espiritualize, receba as inspirações do
Céu, é necessário um certo equilíbrio entre a vida física e a
espiritual. É por isso que os jejuns foram preconizados em épocas
de maior religiosidade. Também, na vida social, um certo tipo de
jejum é aconselhável...
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