Certa
feita estava escalado no Radar e fui ter com tia, para perguntar o
que fazer com um caso diferente qualquer, nem me lembro mais qual
era. Estávamos muito mal acostumados com a disponibilidade da
Clarividente, tudo perguntando, mesmo já sabendo, “só para ter
certeza”. Era uma noite de quarta-feira e Tia estava na sala da
Casa-Grande, com os principais Devas, entregando cavaleiros ou o povo
aos mestres, não sei direito.
Cheguei
por trás mesa, bem juntinho de um dos seus ouvidos e fiz lá a minha
pergunta. Para minha surpresa, ela começou a dizer, em voz alta,
olhando para mim, algo como: - Que é isso? Me respeite. Não aceito
isso. Vá embora daqui...etc. Todos na sala me olharam assustados,
imaginando que coisa horrível eu não devia ter dito para ela; até
Mestre Fróes me puxou pela camisa e disse que era melhor eu sair
dali. Atônito, envergonhado, voltei para o templo sem entender nada
e passei o resto do trabalho tentando me harmonizar para não piorar
as coisas, com toda aquela responsabilidade da corrente-mestra nas
costas.
Sou
obrigado a confessar que fiquei zangado com Tia achando que, daquela
vez, ela pirara mesmo. No outro dia, pela manhã, passei pela Casa
Grande antes de vir para a cidade, disposto a esclarecer o que
acontecera. Entrei pelo escritório do Seu Mário e vim andando pelo
estreito corredor que levava até uma saleta, antes da sala de
visitas, e tinha, à esquerda, o banheiro, a direita o quarto do
casal. Vi Tia sozinha no quarto, sentada em uma cadeira de balanço,
passando muito mal.
Parecia
que o ar que lhe chegava pelo tubo preso ao nariz estava falhando,
pois ela já deixara um dos braços cair pelo lado da cadeira e
mantinha a mão do outro braço sobre o peito. Antes que pudesse
acudi-la, na verdade, pelo que me ocorria, correndo atrás de Guto ou
de Preu, que sabiam como mexer com a bala de oxigênio, ouvi-a dizer
algo absolutamente inesperado para as circunstâncias. Em vez de
dizer “socorro”, "está doendo" ou “ai, meu Deus”,
ela disse: - Jesus, eu te amo! Quem diria isso em um momento assim,
quando a própria sobrevivência está duvidosa? Quando a dor se
impõe e a consciência vai se perdendo? Fiquei tão surpreso quanto
encantado.
Era
a forma mais linda que já vira de se dizer: “o conhecimento de que
tudo é bom nos liberta do mal”. Foi preciso um esforço enorme
para reagir e buscar ajuda. Passado o susto, tomado pelo
arrependimento dos pensamentos irados que tivera pela bronca
aparentemente sem sentido da véspera, comecei a repassar os
acontecimentos e a ficar em dúvida se ela estava, realmente, olhando
para mim, enquanto reclamava daquele jeito. Parecia, agora notava,
que olhava um pouco além de mim, mais atrás, como para alguém que
estivesse logo às minhas costas, provavelmente dizendo palavras bem
diferentes das minhas, que a teriam irritado tanto.
Vendo
e ouvindo o que só uma clarividente poderia. Muito provavelmente
enfrentando quem me acompanhava para me fazer o mal. Ah! O tempo é
um velho andarilho, cinzento e de pés gregos, que não se cansa, é
rápido, tudo leva... Mas nem tudo. Nem tudo.
João do Valle
Adjunto Trino Otalevo
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